terça-feira, julho 25, 2006

Filosofando...

Plagiando um blog ótimo (www.viajenaviagem.zip.net), do Ricardo Freyre, vou postar um texto longo (sorry, Gusha), mas que, pra mim, traduz bem o que é o Rio de Janeiro - até melhor do que o Ruy Castro.

Realmente, é uma cidade surpreendente. Quando fui a primeira vez, falei "Ah, bonito, etc e tal, mas prefiro SP". Hoje, eu tô topando morar lá até pra vender sorvete de Cairu em Ipanema e no Leblon. Se bem que comer AQUELE sorvete de tapioca todos os dias não seria nada desagradável....



Valsa de uma cidade
Se algum dia me perguntarem por que eu viajo, eu vou responder: para ver se encontro algum lugar mais encantador que o Rio de Janeiro. Até hoje, não encontrei. Outras cidades podem ser muito superiores em um ou outro aspecto, mas levam nota baixa em tantos quesitos — tipo ala das baianas, empolgação e alegorias de cabeça — que na média acaba dando o Rio, longe. Se você fizer questão de padrões internacionais de julgamento, tudo bem, lá vai: o Rio é Oscar de cenário, direção de arte, casting, (falta de) figurino, roteiro e trilha sonora original. Em que outro canto do planeta você encontra praia, vida cultural de primeira, gastronomia, compras e um povo exótico (nós mesmos!), tudo num lugar só, e em qualquer época do ano?

Para começar — eu adoro dizer isso, porque consigo injuriar paulistas e cariocas numa mesma frase — o Rio é a melhor coisa de São Paulo.

A própria ponte aérea já é uma grande idéia — uma invenção made in Brazil, imagine só, fruto da aliança entre o capital e a vontade de fugir do trabalho. O vôo inteiro é lindo. Com tempo bom, são pelo menos 30 minutos ininterruptos de litoral sendo traçado ao vivo embaixo do seu nariz: a Ilhabela, a baía de Ilha Grande, a restinga da Marambaia. A aterrissagem é mais linda ainda. O avião mergulha perigosamente em direção a um centrinho manhattóide — mas quando você desce a escada, o bafo, o cheiro da maresia e a visão do Pão de Açúcar no canto esquerdo da tela dissipam quaisquer dúvidas e dão as boas-vindas à Guanabara. Que Hong Kong que nada: não existe pouso como no Santos Dumont.

Antigamente, você mal chegava e era disputado por três ou quatro mulheres que aliciavam você ao mesmo tempo, usando a mesma frase provocante (“Táxi, senhor? Táxi?”). Hoje a coisa está (infelizmente) mais organizada. Mas mesmo assim você entra no táxi e em trinta segundos já está costeando o gramado pré-brasiliense do Aterro, com o dinheiro velho da praia do Flamengo te olhando de um lado, o Pão de Açúcar ficando cada vez mais próximo do outro, e o conjunto da obra dando a certeza de que o Brasil um dia já teve um projeto estético mais bacana.

Mais um pouco, você atravessa o túnel e chega a Copacabana, o RG extraviado do país, espelho quebrado da nossa alma, um bairro chamado 200 (desisto. Nada vai ser melhor que “purgatório da beleza e do caos”, © Fausto Fawcett, ou “Notre Dame d’Avenue”, © Eduardo Dusek). Se o Brasil fosse fazer um tratamento ortomolecular e tivesse que arrancar um fio de cabelo como amostra, este fio de cabelo (originalmente pichaim, depois alisado) seria Copacabana. Estamos todos lá: milionários falidos e favelados emergentes, latifundiários e sem-teto, aposentados e boys, classe média alta, classe média baixa, classe média gorda, classe média magra, gente de todos os fatores de proteção solar e de uma profusão incatalogável de sexos dividindo um quarto-e-sala de 6 postos. Copacabana não vive: se expõe. Poder andar descalço e de roupa de banho (meninas, não esqueçam a canga) pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, na hora do rush, revela mais sobre a nossa cultura do que 5 anos de sociologia na PUC.


Adoro, mas muito obrigado. Prefiro assistir a Copacabana de uma distância segura — em Ipanema ou no Leblon. É mais bonito, você pode ir à churrascaria Plataforma invocando a memória de Tom Jobim quando na verdade é pelo ar condicionado depois da praia, e sempre dá para responder “Pela Lagoa”, não importa qual seja a pergunta do taxista. Mais para lá do que isso só se deve ir (e voltar correndo) à Prainha, ao Quinta, à Tia Palmira ou muito excepcionalmente a um show no ATL Hall. Ou seja: pule a Barra. Por enquanto, a Barra não diz respeito a forasteiros como você e eu. Viver na Barra parece ser uma espécie de programa espacial colocado à disposição do contribuinte carioca. A Barra da Tijuca é a Lua de Copacabana.


(A propósito: não acredite que para ir à praia você precisa pra lá da Barra. É verdade que as praias pra lá da Barra são incomparavelmente mais limpas e menos cheias que as da Zona Sul, mas se você quer praias incomparavelmente mais limpas e menos cheias as da Zona Sul, não vá ao Rio. O aspecto natural mais interessante das praias do Rio é a fauna. Não compensa enfrentar as agruras do trânsito apenas por um pouco de contato com o reino mineral.)

O que faz do Rio um lugar fora de série para passar férias é que lá o turista nunca é intruso. O turista apenas está compartilhando das férias da população local. Não é preconceito, não: é que tudo o que é feito ao ar livre no Rio de Janeiro tem aparência, gosto, textura e consistência de férias. Eles provavelmente nem se dão conta, mas fazer jogging na beira da praia às 6 da manhã é como sair um pouquinho de férias todos os dias. Tomar um chopp na saída do trabalho (nem que seja depois de um serão nipônico) é férias. Num domingo ensolarado, a sua cidade pára — mas o Rio de Janeiro entra em férias. É um prazer incomparável poder passar as férias num lugar tão bem equipado para as férias dos seus próprios habitantes.

Mas claro que você não vai perceber nada disso, se passar dia e noite surtado pela síndrome da paranóia adquirida.

Eu sei, é mais forte do que você. Foram anos e anos de briga em rede nacional, às 8 da noite, entre seu Brizola e dona TV Globo, e fica difícil você captar o encanto quando o seu radar só está programado para detectar arrastão. Mas veja bem: se o Rio fosse tão perigoso assim, como pode tanta gente estar na rua o tempo todo, tomando seu chopinho de pé na esquina, andando no calçadão de relógio, indo a Ipanema no domingo? (Domingo é o dia Mundial do Arrastão.) Como se explicam os grupos de velhinhas que vão ao teatro? (Você já viu velhinhas saírem em grupo em São Paulo?) Muito mais perigosas são as cidades que fazem a gente ficar plantado no sofá com 3 controles remotos na mão por total falta do que fazer na rua.

(E agora tem a questão das balas perdidas. Se eu morasse com vista para um foco de brigas de traficantes, eu também dormiria embaixo da cama todas as noites. Agora: daí a achar que eu vou sair da avenida Angélica, tomar a ponte aérea, me hospedar em Ipanema, pegar um táxi numa hora determinada e para um trajeto tal, de modo que a incidência de sinais verdes e vermelhos, associada à disposição do taxista em ultrapassar ou não os amarelos, faça com que a gente intercepte uma infeliz de uma bala perdida, é, realmente, muita pretensão. Se eu me considerasse estatisticamente tão importante assim, jogaria na loteria três vezes por semana.)

Você já pensou em riscar Roma do seu caderninho só porque lá eles têm trombadinhas de Vespa, que engancham o guidão na bolsa dos turistas e saem na boa? Miami por acaso chegou a sair das suas cogitações depois que a polícia mandou trocar as placas dos carros alugados devido às gangues que perseguiam (assaltavam e às vezes assassinavam) turistas? Duvido que você tenha esperado o prefeito Giuliani baixar a taxa de criminalidade para só então viajar a Nova York.

O maior crime atualmente em cartaz no Rio de Janeiro é tanta gente esquecer que a cidade mais interessante da galáxia está a menos horas de vôo de casa do que as horas de fila no consulado americano.

Mas ir ao Rio não tem nada a ver com civismo — e tudo a ver com prazer. Vá, e faça todos os programas de turista que você sempre achou bregas. Suba ao Pão de Açúcar e ao Corcovado, assista a um jogo do Flamengo, desfile numa escola de samba — e constate enfim que virar clichê não é para qualquer um.

Descubra qual é a musa do verão, do alto verão, do inverno, do feriadão ou dos próximos 15 minutos. Aproveite e embarque numa dessas modinhas que pegam no Rio como febre e que duram menos do que gripe. Tome um chá na Confeitaria Colombo (só em dias de semana), assista a um show no Rival (é mais engraçado que no Canecão, que por sua vez é muito mais legal que o Palace), faça recenseamento de globais no Antiquarius, ande de tênis e meia na pista fechada da Vieira Souto no domingo, coma um sanduíche de pernil com abacaxi no Cervantes, inicie um movimento para incluir o caldinho de feijão do Bracarense na lista da Unesco de patrimônios da humanidade, e, na dúvida, responda sempre “Pela Lagoa” a qualquer pergunta de taxista.

Na volta, fique feliz por não morar lá — assim você pode sentir muito mais vezes a emoção jobiniana de aterrissar na Guanabara.
Originalmente publicado no livro Viaje na Viagem, em 1998.

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