segunda-feira, janeiro 03, 2005

Não tenho mais vô para me defender de pé na bunda

Foi há uns 15 anos. Eu estava em Socorro, "onde ainda se vive", e tinha ido sozinho até um dos vários potes da cidade - como são chamadas as bicas de água de água natural espalhadas em vários pontos do município. Após saciar a sede e minha inseparável agitação, voltava para a casa dos meus avós, quando fui surpreendido por um moleque caipira, pouco maior do que eu, que sem mais nem mesmo, sem sequer me confrontar ou me acusar de algo, começou a me dar chutes. Resignado, com a minha covardia típica e vendo outras moleques perto dele, decidi mais do que depressa acelerar o passo e seguir a máxima cristã "quando alguém lhe der um pé na bunda, ofereça a outra nádega". Mas eis que, mesmo me afastando do território que supostamente tinha invadido e sem esboçar qualquer revide, o meu algoz não cessava a sua agressão, mirando sempre o meu traseiro. Quanto mais corria, mais fortes eram os chutes. Percebi então que ao desacelerar, ele também diminuia a potência das agressões. O melhor que tinha a fazer era continuar andando, à espera de uma intervenção divina.
Humilhado e castigado, sem sequer saber o motivo, desabei a chorar, mas seguia o meu rumo. Até que do alto da rua, meu avô José Benedito dos Santos, avistou o meu calvário e, mais do que depressa, ao alto dos seus 1.90m, correu em minha direção, catou o Jeca Tatu mirim pelas orelhas braços e perguntou o que ele estava fazendo. E eis que venho a minha acusação: "Ele rrroubou minha rroupa". - "Que roupa?", questionou meu avô, não vendo nada em minhas mãos e certo da minha inocência.
Enquanto meu irmão dava risada e meu tio e meu pai questionavam a minha covardia e procuravam um motivo para eu estar recebendo a agressão sem revidar, meu avô perguntou apenas se eu estava bem e não largou do chutador até este me pedir desculpas. Meu avô não bateu no caipira, apenas o levou até a mãe dele, que viria dar a devida punição.
Meu avô, que até então eu nunca lembrara ter recebido uma manifestação de afeto, nem mesmo um beijo ou um pegar no colo, não só me defendeu como entendeu que, mais do que ver o meu algoz levando o mesmo troco, o que eu queria mesmo era ser declarado inocente e merecedor de afeto, não chutes.
Não me lembro se nesse dia, agradeci ou beijei o meu avô. De uns anos para cá procurava fazer isso. Mas agora chegou a minha vez de declará-lo inocente diante da implacabilidade do tempo, que o tirou de mim e do mundo para sempre.
Agora me resta somente uma avó. Quero dar ainda muitos beijos e abraços nela.

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