sexta-feira, novembro 26, 2004

O FIM e Princípio,

Publicado na capa da Gazeta Mercantil de hoje, por Márcio Rodrigo*

Fim e o Princípio”, título provisório do pró-ximo documentário de Eduardo Coutinho, em fase de mon-tagem, cabe perfeitamente para os documentários “Entreatos”, de João Moreira Salles e “Peões”, do pró-prio Coutinho, que chegam às salas de cinema hoje. Com o patrocínio da Brasil Telecom — a mesma em-presa acusada de mandar espionar alguns personagens do atual primei-ro escalão da Presidência da Repú-blica brasileira — os documentários são fruto de um projeto conjunto proposto por Salles, no final de 2002, à Rede Globo e que não foram em frente por “questões operacio-nais”. A Globo queria os filmes para exibi-los em questão de dias, e o di-retor pediu ao menos um ano para tê-los prontos.
Dois filmes dos dois maiores documentaristas brasileiros em ati-vidade e um mesmo personagem em foco. Luís Inácio Lula da Silva, também em dois momentos cru-ciais de sua vida: as greves operá-rias do ABC paulista, em 1979 e 1980, que lhe conferiram projeção nacional como líder dos trabalha-dores, e a quarta (e última) cam-panha do mais importante nome do PT à Presidência, depois de três derrotas. Fim e princípio, sem dú-vida, de uma jornada histórica do brasileiro nascido na pobre zona Agreste de Pernambuco, que tinha tudo para viver e morrer no lugar comum, mas ascendeu ao ponto de ocupar a cadeira executiva mais importante do País.
Com propriedade, Amir Labaki, diretor do MIS de São Paulo e pre-sidente do “É Tudo Verdade”, mais importante festival de documentá-rios do Brasil, observou que os fil-mes apresentam dois momentos fundamentais na vida de Lula: “o passado ‘mitológico’, como líder grevista e o atual, no momento em que está prestes a se tornar presi-dente”, sonho acalentado desde 1989 e postergado devido à incom-patibilidade dos antigos discursos de Lula com a elite brasileira. Além de atestar a boa fase que atravessa o cinema documental brasileiro, e de “devolver o poder ao foco deste gênero”, como frisa Carlos Alberto Mattos, autor do li-vro “Eduardo Coutinho, o Cineas-ta que Caiu na Real”, os filmes, ao elegerem dois momentos extremos da vida de Lula, sintetizam as prin-cipais mudanças políticas ocorri-das no País nos últimos 25 anos.
Tal como no clássico “O Leo-pardo”, de 1962, o diretor italiano Luchino Visconti, alerta, por meio da personagem Príncipe de Sali-nas, de que “é preciso que as coi-sas mudem para que se mante-nham como estão”, “Peões” e “En-treatos” explicitam isto fora da ficção, permitindo que se perceba que embora muita coisa tenha mu-dado no Brasil e apesar da vitória histórica de um operário na dispu-ta pela Presidência da República, a situação política continua bem próxima do que sempre foi.
Se, como revela João Moreira Salles, a idéia inicial dos filmes sur-giu para registrar um momento im-portante do Brasil contemporâneo, as imagens captadas por ele, contra-postas as do filme de Coutinho, di-mensionam a figura de um Lula que só conseguiu atingir seus obje-tivos após, realisticamente, ade-quar seus ideais, discursos e, mesmo comportamento, aos da classe média e da elite.Do “sapo barbudo”, como foi pejorativamente chamado por Leonel Brizola, seu con-corrente na corrida presiden-cial de 1989 — a primeira en-frentada por Lula — capaz de comandar uma greve que pa-rou mais de 140 mil operários do ABC, levando o então pre-sidente da Fiesp, Mário Ama-to na eleição de 1989, a decla-rar que caso Lula vencesse as eleições “uns 800 mil empre-sários mudariam do País”, praticamente nada sobrou. Em seu lugar, surge no filme um cavalheiro bem vestido, de gestos comedidos, usando gra-vatas da grife francesa Hèrmes e camisas do estilista Ricardo Almeida, que assume perante às câmeras de Salles, que não tem “saudade nenhuma do tempo que usava macacões nas fábricas”.
No caso de Lula, não foi a “espe-rança que venceu o medo”, como indicava o slogan do marqueteiro Duda Mendonça para celebrar a vitória em 2002.Foi Lula quem se superou, per-mitiu se lapidar e se influenciar por outras linhas de pensamento, buscou alianças com setores até então inimagináveis pelo PT, desbancando assim o “medo” que setores mais conservadores tinham de uma eventual República co-mandada por ele. Compro-vando a eficácia do postula-do de Visconti, o Brasil ele-geu Lula porque teve a sensação de que “as coisas permaneceriam as mesmas” e que somente pontos que não implicassem uma mudança drástica na vida da elite po-deriam vir a ser alterados.
Salles tem razão ao obser-var que “se Lula vencesse ou perdesse, alguma coisa de im-portante estaria sendo dito so-bre o Brasil naquele momen-to”. Lula venceu e superou em parte os velhos preconcei-tos de classe que não aceita-vam um proletariado, asso-ciado ao “comunismo” no centro do poder. Rompeu sim a trajetória de “pessoas de classe média, intelectuais como Jusceli-no, Jango e Fernando Henrique Cardoso, que chegaram ao poder”. Conseguiu o feito, enfim, porque se empenhou em ser muito pareci-do com todos eles. De “peão grevista” a presidente, Lula fez uma longa viagem. Não de retorno a si mesmo e a seus ideais, como alguns críticos inadvertida-mente têm proclamado depois de assistirem aos filmes. Mas de al-guém que percebeu a necessidade de contemplar e tentar conciliar to-das as contradições e paradoxos que formam a complexa sociedade brasileira. “Entreatos” capta com sutileza esta decisão de Lula, mos-trando que mais uma vez Salles tem razão quando afirma que “para além do filme a existência das ima-gens captadas por sua equipe são fundamentais”. Juízos de valor à parte, e posições políticas também, são registros históricos da intimida-de de uma campanha eleitoral de um homem decidido a deixar as marcas de sua experiência não só política, mas humana, na realidade social brasileira. Daqui a cem anos, certamente, cientistas políticos e sociólogos se debruçarão sobre elas para avaliar o legado do governo Lula na História do País.
*Mestre em Cinema Brasileiro pela Unesp.

O princípio e o Fim


Ao começar a captação das imagens para o documentário “Entreatos”, que estréia hoje nos cinemas, simultaneamente com “Peões”, de Eduardo Coutinho, João Mo-reira Salles julgava que faria um filme sobre a “impossibilidade de fazer um filme”. Ao propor o projeto para o então candidato à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva, o di-retor temeu que, mesmo com a aprovação de Lula, o acesso às filmagens seria restrito e cer-cado de impossibilidades. Não foi o que ocorreu.
Lula não só consentiu, como absorveu a equipe de Salles no coração de sua campanha. Uma aula de liberdade de expressão de um homem que nos últimos meses, sufocado pela controvérsia que cercou projetos como o da Ancinav e o do Con-selho Federal de Jornalismo, foi acusado de que-rer reinstaurar a censura no País. Salles, por sua vez, soube aproveitar cada momento com o ex-operário grevista, captando nuanças de compor-tamento do hoje presidente praticamente imper-ceptíveis, quando registradas pela imprensa tele-visiva, por exemplo.
A escolha do material filmado — que contou inclusive com imagens captadas por Mariana Mercadante, filha do senador Aloízio Merca-dante, no dia da vitória — recaiu exatamente sobre o lado não público de Lula e seu cotidia-no. Daí o nome do filme ser “Entreatos”. Salles, um confesso perseguidor da narrativa adequada para cada assunto tratado em seus documentá-rios, soube extrair das imagens dos bastidores da campanha do PT o essencial para fazer um filme, que ajuda a esclarecer hoje muitas pos-turas adotadas pelo presidente. Sem se deixar pautar pelos noticiários, montou seu filme exi-bindo um Lula que assume, como qualquer ou-tro operário, que bebia na hora do almoço, que reclama do protocolo que enfrentará caso eleito e que diz não ter saudades do tempo que era operário. Corajoso, se levado em conta que Eduardo Coutinho, em “Peões” — construído a partir de depoimentos de operários anônimos que participaram das greves de 1979 e 1980 no ABC, comandadas por Lula — preferiu supri-mir o depoimento de Luiza, uma das entrevis-tadas, no qual ela comenta os hábitos etílicos do ex-líder sindicalista.
Coutinho, usando mais uma vez seu estilo “talking heads” de fazer documentários, torna-se vítima de sua própria “camisa de força” em “Peões”. Todo o trabalho de resgatar persona-gens anônimos por meio de fotos e filmes da época, como “ABC da Greve”, de Leon Hirs-zman, torna-se praticamente nulo. Os entrevis-tados, redundantes, muito pouco acrescentam ou esclarecem sobre o movimento operário que aju-dou a mudar os rumos da política brasileira na década de 80. Coutinho, em alguns trechos, ape-la para imagens do filme de Hirszman naquilo que parece ser uma tentativa de completar os hiatos que as declarações não preencheram em “Peões”. Apesar desconsiderandar todo o pro-cesso histórico e sociológico que Lula teve que atravessar para chegar à Presidência, “Entrea-tos” é muito mais documental do que “Peões”, atestando a urgência de Coutinho se reciclar, mesmo sendo um gênio do documentário.



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