segunda-feira, janeiro 12, 2004

Hollywood Ending?

Lembram daquele papo que tivemos sobre a "crise existencial" do cinema americano no pós 11 de Setembro? Transformei em matéria.

São Paulo, 30 de Dezembro de 2003 - A máxima do intelectual francês Christian Metz de que no cinema "existe sempre sentido por trás do sentido" foi explorada ao extremo pelos realizadores americanos desde que os Estados Unidos assumiram a supremacia da produção de filmes, no período "entre-guerras", no século passado. Ninguém melhor do que as grandes majories daquele país para usar mensagens subliminares para construir o ideal do sonho americano e vender ao mundo os valores apoiados no consumismo do "american way of life".

Um movimento de estranhamento sutilmente marcou a produção americana em 2003. Não só filmes produzidos no "Império de Bush", mas tendo a potência hegemônica como tema parecem querer revelar algo que nem os próprios cineastas sabem ao certo o que é sobre a nação mais poderosa do planeta. No ano em que a poderosa Warner Bros. concluiu com cifras que ultrapassaram centenas de milhões de dólares as trilogias de "Matrix" e "O Senhor do Anéis" - que possuem todos os elementos que fizeram o sucesso do cinema hollywoodiano por mais de meio século - filmes como "Longe do Paraíso, "As Horas","Dogville" e a comédia "Hollywood Ending", de Wood Allen, mostram a perplexidade do cinema americano não só perante seus próprios filmes, mas também perante sua própria sociedade.

Durante décadas, os Estados Unidos ofereceram ao mundo ocidental - e em muitos casos o oriental também - os valores da classe média americana, herdados da White Anglo Saxon Protestants (WASP) grupo originado com os primeiros imigrantes que colonizaram a América - por meio de seus filmes. Estes valores, norteados pela família, pela moral cristã e pelo conservadorismo, provindo de raízes inglesas, sempre estiveram presentes no cinema mericano e só se acentuaram após a Segunda Guerra, quando ocorreu uma polarização da maneira de se filmar no mundo.

Como indica o intelectual francês Gilles Deleuze, em seu livro "A Imagem-Tempo", "a modernidade cinematográfica encontra suas origens na Europa do pós-guerra, com o neo-realismo italiano". Todos os movimentos cinematográficos surgidos neste período nos países devastados economicamente pela Guerra são marcados por filmagens externas, recusa dos efeitos visuais e de montagem, temas sociais, recurso a atores não profissionais e narrativas "frouxas", ou sem encadeamento entre começo, meio e fim, e ausência de heróis e personagens centrais. Exatamente o extremo oposto do que foi feito e vendido pelo cinema americano como sendo o modelo "do mundo ideal para se viver" e que gerou o termo "cinema hollywoodiano".

Sim, Hollywood produziu sonhos e nunca fez muita questão de esconder isso nem de seus ríticos mais acirrados. Seu cinema foi a maneira que encontraram para se auto-afirmar perante uma nova ordem mundial que nascia. Durante anos, "gêneros" se sucederam e moldaram o olhar e o gosto do público do mundo inteiro. Do western aos musicais e desses às comédias de costume e aos blockbusters de ação, tudo foi regrado e apresentado em um padrão que explicitava a supremacia americana perante o resto do mundo.

Os aos Clinton, essencialmente opulentos economicamente, definidos pelo presidente do Banco Central Americano (FED), Allan Greenspan, como os da "exuberância irracional" pareciam consolidar definitivamente a nação americana como a mais importante do planeta.

Em um mundo em que o socialismo praticamente foi enterrado na década anterior, o capitalismo liberal americano e os valores morais que davam a tônica a sua sociedade de consumo pareciam inatingíveis e inquestionáveis.

Justamente por não enxergar uma explicação clara, no final de 1999, a crítica mundial especializada em cinema, não conseguia localizar os exatos motivos que levaram o inglês, radicado no Estados Unidos, Sam Mendes a produzir o filme "Beleza Americana", tendo no elenco Kevin Space, ator de primeira grandeza do "star system" dos grandes estúdios.

A história "desconstrói" o universo dos subúrbios abastados e aparentemente perfeitos das cidades americanas, denunciando a beleza "quase insuportável" do cotidiano. O próprio nome de filme é uma menção a um tipo de rosas vermelhas, sem cheiro e espinhos, as "american beauty", "largamente cultivadas nos jardins das residências em que se passa a história. Era difícil aos próprios americanos entender uma crítica que atacava o "american way of life" justamente em um momento em que o modelo parecia ter atingido seu ápice.

A controversa eleição do conservador republicano George W. Bush e o posterior atentado às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, parecem ter colocado em xeque a confiança do povo americano em si mesmo. O país que parecia inabalável e inatingível, de repente se viu vulnerável. Os reflexos mais diretos desta crise se apresentaram diretamente na desaceleração econômica que tomou conta dos Estados Unidos durante 2002 e boa parte deste ano.

Se no plano econômico a nova era de incertezas se refletiu no PIB, no plano cultural a crise chegou de maneira sutil nas histórias contadas no cinema. Claro que Hollywood não abandonou seu padrão de produção e roteiros com estruturas narrativas clássicas que sempre identificaram seu cinema. Os filmes americanos continuam parecendo filmes americanos, sendo capazes, mesmo em tempo de incertezas, de satirizar qualquer tipo de podução que fuja a suas regras de filmagem, como fez Wood Allen com "Hollywood Ending", que no Brasil estreou com o curioso título de "Dirigindo no Escuro".

A diferença é que o movimento que se desenvolve agora quer questionar o que ocorre com os valores "vendidos" ao mundo pela nação mais poderosa do mundo não para mudá-los, mas sim para reiterá-los e corrigi-los a fim de que continuem mantendo a hegemonia quase que total perante os espectadores. Como ensina Lucino Visconti, cineasta italiano, no clássico "O Leopardo", de 1963, "É preciso que as coisas mudem para que se mantenham como estão.

Os filmes agraciados com o Oscar em 2003 deram uma indicação clara de que embora os americanos permitissem questionamento, não estavam muito dispostos a verdadeiras mudanças em seu 'way of life". A escolha do musical "Chicago" na categoria "Melhor Filme" comprova essa recusa de encarar a nova imagem trincada que insiste em pairar no imaginário dos americanos. O filme, embora se passe em 1929, ano do Crash da Bolsa de Valores de Nova York e dos problemas com a Lei Seca e os gangsters, não faz nenhuma menção histórica aos temas. Tudo em "Chicago" é apenas entretenimento, luxo e sonho.

No caminho oposto, "Gangues de Nova York", de Martin Scorsese, que retrata a sangrenta formação da ilha de Manhattan, em Nova York, apesar das 10 indicações que teve ao Oscar, não levou nenhuma estatueta. O filme é escuro, feio e sujo e coloca em papel degradantes estrelas como Leonardo DiCaprio e Cameron Diaz. "Gangues..." ficou quase um ano na "geladeira" até ser lançado em janeiro deste ano. Para o azar de Scorsese, a película havia ficado pronta logo após os atentados de 11 de setembro. A poeira das torres já havia maculado demais a "Big Apple" para que o filme lançasse mais "lama" sobre a imagem símbolo do capitalismo financeiro.

Se "Gangues..." não foi bem-visto pela Academia, o mesmo não se pode dizer sobre "As Horas", de Stephen Daldry. Tomando como ponto de partida o livro 'Mrs Dalloway", da escritora inglesa Virginia Woolf, interpretada por Nicole Kidman, que ganhou o Oscar de Melhor Atriz, o filme retrata um dia na vida da escritora em 1923, e de duas mulheres americanas, uma na década de 50 e outra em 2001.

Mais uma vez, o subúrbio luxuoso a tranqüilo serve de cenário para que Julianne Moore, a personagem dos anos 50, desvele a falsa noção de "família feliz" que Hollywood construiu em seus filmes e inúmeros países reproduziram, seja em "comerciais de margarina" ou em romances açucarados de novelas latinas. Sua personagem foge, deixando marido e filho para não se suicidar. Para ela, o peso do sonho americano era insuportável. O contraponto de sua atitude reverberará décadas mais tarde, quando as histórias de Moore Meryl Streep se cruzam em 2001, explicando a importância da obra de Virginia Woolf
para o filme.

Se Julianne Moore se libertou em "As Horas", colocando em crise a "imagem feliz da família americana", "Longe do Paraíso", de Todd Haynes, é um espetáculo de fotografia e direção de arte apenas para mostrar que mesmo se tratando de cinema hollywoodiano as aparências podem enganar e muito. "Dame" Moore tem uma vida feliz e pacata, como a típica dona de casa americana, bem-casada e com filhos, até que descobre a homossexualidade de seu marido.

Para complicar, desenvolve uma paixão platônica por seu jardineiro que é negro, em uma sociedade marcada pelo racismo. O interessante de "Longe do Paraíso" é que ele oscila entre o desconcertante e o delicado, mostrando os inúmeros guetos que a sociedade cria para poder perpetuar seus preconceitos.

Nada porém foi mais desconcertante para mostrar a "discreta" crise existencial da sociedade americana por meio da película do que dois filmes que concorreram ao "Festival de Cannes" deste ano. Toda a sutileza que a ala hollywoodiana teve para mostrar a "desconstrução" do "american way of life" foi esquecida por cineastas como o americano Gus Van Sant e o dinamarquês Lars Von Trier. "Elephant", que levou a "Palma de Ouro", inspira-se no incidente ocorrido na cidade americana de Colombine, quando dois jovens abriram fogo contra colegas e professores e depois se mataram, para contar sua história.

O tema também tratado pelo documentário "Tiros em Colombine", do americano Michael Moore, é segundo Van Sant, seu ponto de vista sobre sua própria vida nos Estados Unidos. Claro que o resultado de mexer em uma das feridas americanas em um momento em que a França era contra a invasão do Iraque fez do filme de Van Sant o favorito à Palma. A geopolítica também afeta o
cinema.

Nesse movimento de questionamento, xeque e desconstrução dos valores americanos pelas produções cinematográficas nada foi mais contundente do que "Dogville", de Von Trier, que tem Nicole Kidman, atualmente a mais badalada diva do cinema hollywoodiano, como protagonista. O filme é o primeiro da trilogia "América - País das Possibilidades", que segundo declarou o diretor dinamarquês, "é uma campanha para libertar a América". O filme foi um dos favoritos em Cannes e deve chegar ao Brasil - se a estréia não for adiada mais uma vez - em janeiro.

A história, toda filmada sobre um chão negro, marcado por giz, que delimitam ruas, casas e jardins, acontece durante a Grande Depressão, que invadiu os anos 30, fazendo um contraponto à realidade musical e atemporal de "Chicago". A personagem de Kidman chega à "cidade de giz" fugindo da perseguição de gangsters. Acolhida pela população é gradativamente escravizada, abusada e punida, até ser delatada aos contraventores da "Lei Seca".

Tanto no tratamento estético, como no desenvolvimento da narrativa, "Dogville" é exatamente o oposto do que são os filmes hollywoodianos. Von Trier, que nunca esteve nos Estados Unidos, realiza um cinema sem concessões. É um filme indigesto sobre uma América impalatável aos que se acostumaram a sonhar com o glamour hollywoodiano.

A "fábrica de sonhos" que sempre vendeu fantasias exemplares sentiu e refletiu, de maneira sutil, os medos e as crises que assolaram o imaginário da sociedade americana nos últimos dois anos. Os filmes finais de "Matrix" e "O Senhor dos Anéis", cinema hollywoodiano em seu estado mais puro, embora tenham dado lucro, parecem não ter reverberado tudo o que deveriam pelo mundo. "Matrix Revolutions" conseguiu desapontar até os fãs mais exacerbados da série. É cedo ainda para se especular sobre "O Senhor dos Anéis". Hollywood torce os dedos para que o filme se torne uma unanimidade no gosto do
público, devolvendo todo o poder de conquistar corações e mentes de maneira irrestrita
que o velho cinema americano sempre teve desde de seus primórdios.

Márcio

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